quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

CRÔNICA DO TEMPO


Antigamente, o mundo era mais fácil. Não sei se a verdade era simplesmente essa, ou se vemos a vida sob um prisma mais colorido quando somos crianças, mas o mundo era mais fácil, mais simples. Até mesmo as minhas memórias eram mais claras: eu não esquecia de nada importante, e não lembrava de nada que não fosse necessário lembrar. Hoje, pouco me resta. Somente as imagens mais marcantes me voltam à mente.Lembro-me de minha casa, naquela rua cheia de nuvens e cheia de vida, onde o homem do algodão-doce passava pontualmente às dez horas da manhã de todo o dia. Naquela época eu acordava cedo. Tinha um mundo ao redor que me encantava. Dormir seria um desperdício inconcebível, inimaginável, intangível. Dificilmente meus pais tinham dinheiro sobrando para que eu podesse comer algodão-doce mas, algumas vezes, minha avó me dava alguns trocados. Ninharias que sobravam de sua aposentadoria parca - e que hoje percebo o quanto era suada. Tínhamos um pátio grande nos fundos de casa, de forma que era lá que eu passava a maior parte do tempo. Sempre tive amigos, mas meu passatempo predileto era brincar sozinho, escondido com meus bonecos, entre as goiabeiras e laranjeiras, entre as formigas e cigarras do jardim. Nunca tive nojo: os sapos e tatuzinhos eram minha diversão predileta... A vida era fácil...As coisas mudaram um pouco de figura depois de algum tempo. Aos dez anos - segundo meu pai - eu já era um homem, e precisava entender o valor das coisas, as desgraças do mundo. A situação só se agravou com a morte de minha mãe e de minha avó - uma morta pelo câncer e outra pelo desgosto. Meu pai resolveu que teria de vender "esta casa que nos machuca com suas memórias inúteis". Resolveu que teria de se mudar em busca de emprego, e resolveu que eu era um peso mais morto que minha mãe. Conclusão: fui atirado em um colégio interno, do qual só fui sair depois de muitos anos.Hoje tudo é muito diferente. Sempre fui sereno demais para odiar alguém - como meu pai, por exemplo. Sempre fui muito sereno para querer buscar algum sentido oculto no final das coisas. Hoje, se me olho no espelho, enxergo meu pai e nego minha mãe. Nego minha infância. O mundo perdeu a cor. Eu olho para as pessoas e só vejo esquilos que nunca cessam a busca por nozes para o estoque do inverno onipresente que nos cerca. E o problema é que - mesmo depois de todo o trabalho que temos, organizando tudo - morremos sem poder gozar de nada. Morremos sem sentir o sabor das nozes que nós mesmos catamos. E depois, Puff. Acaba. E não me venha com essa de deus e paraíso. Eu já tentei, mas simplesmente não posso me obrigar a ter fé. E, por isso, o mundo se torna um lugar cinza, débil e insignificante.Cá estou agora, dentro de um apartamento mais imundo do que a minha cabeça, bebendo mais do que respirando. Passando os dias em um estado de dormência mais profunda que a morte. E mesmo assim, nada se resolve. Então eu canto. A formiga, afinal de contas, só trabalha por não saber cantar.Ah, e se o mundo fosse feito só de insetos, só de cigarras, voltaria a ser colorido? Não. Ridiculamente, algo ainda nos encomodaria. Nós somos o nosso maior problema...