quinta-feira, 25 de junho de 2009

Famintos e Sedentos


Junte as transnacionais dos alimentos com sua transgenia, os técnicos e cientistas a seu serviço, os políticos, a FAO e sempre teremos a promessa de que a fome será superada. Estabeleceram metas para esse milênio e uma multidão de ONGs se puseram também em busca desse objetivo. Eu mesmo sou membro da FIAN, entidade internacional que luta pelo direito humano à alimentação.
Entretanto, esses dias ficamos sabendo que os famintos do mundo saltaram de 830 milhões para mais de 1 bilhão de pessoas em pouco mais de um ano. A FAO não teve nenhuma dúvida em creditar aos agrocombustíveis 75% de responsabilidade nesse aumento.
Em interconexão direta com a fome estão os sedentos. Mais de 1,2 bilhões de pessoas em todo o planeta não tem água potável para beber todos os dias. A água, fonte de vida, torna-se fonte de mortes. Uma em cada quatro internações hospitalares provém de doenças veiculadas por água contaminada. A foto que corre a internet, com um menino africano bebendo urina diretamente na vagina de uma vaca, anula qualquer palavra. O curioso é que 70% da água doce do planeta são utilizados para produzir alimentos. É para uma elite restrita da humanidade que não pode enfrentar sazonalidade na produção de alimentos, como as uvas e mangas aqui do São Francisco, com duas ou três safras ao ano.
O avanço dos agrocombutíveis e as mudanças climáticas só farão agravar essas estatísticas. Acontece que cada número é uma pessoa humana, um universo único e irrepetível. Cada pessoa tem sua própria dignidade, seus pavores, oriundos da fome, da falta de perspectiva, da morte que se avizinha sem que tenha de fato passado pela vida.
O sistema mundial de abastecimento já se mostra fracassado, mas deverá desabar com as mudanças climáticas. A redução da humanidade pela fome e pela sede – com todas as doenças que vêm juntas – já é realidade para bilhões de pessoas e se avizinha como a maior catástrofe já enfrentada pela humanidade.
O Brasil reduziu seus famintos com pequenas medidas, como o bolsa família e a aposentadoria dos rurais. A sede tem sido diminuída pelas cisternas e outras pequenas obras hídricas. Portanto, é possível superar a fome e a sede, mas é preciso disposição política. Entretanto, o governo brasileiro patrocina os agrocombustíveis na África e na América Central, além do Brasil, substituindo populações produtoras de alimentos por espaços de produção de energia para carros. O Brasil tem parte nessa conta macabra.
Como na questão ambiental, assim também na fome e na sede, temos ganho algumas batalhas, mas vamos perdendo a guerra.

domingo, 7 de junho de 2009

PASSEIO SOCRÁTICO - Frei Betto


Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico. A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que, "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós. "O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, têm alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia? Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela... Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade. Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas, não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja. Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".