quinta-feira, 28 de abril de 2011

CAPITALISMO DE ESTADO MOLDA A SEGUNDA ETAPA DA GLOBALIZAÇÃO

No 16 de dezembro de 1773, um grupo de colonos de Boston abordou três navios ancorados na baía e lançou ao mar as suas cargas de chá. O evento célebre, conhecido como a “Festa do Chá de Boston”, foi o ponto culminante da campanha contra a imposição de tributos sobre as Treze Colônias que desaguaria na Revolução Americana. Há quatro anos, libertários e ultraliberais fundaram nos Estados Unidos o Partido do Chá de Boston para combater o que interpretam como a tirania do Estado sobre os indivíduos. Poucos, fora do país, souberam da existência da pequena corrente. Contudo, há pouco, a agitação política do Partido do Chá de Boston ajudou a provocar uma das maiores surpresas eleitorais da história americana recente: a derrota da candidata democrata à cadeira do falecido senador Ted Kennedy. Nos Estados Unidos, como no resto do mundo, sob a crise financeira global, o Estado converte-se na mola mestra da economia capitalista.
É uma mudança e tanto. Há duas décadas, com a queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética, a globalização foi definida como um triunfo do liberalismo. O pensador americano Francis Fukuyama emergiu da obscuridade com seu livro que anunciava o “fim da História” e a vitória final da democracia liberal. De um lado, a liberdade econômica passou a ser cantada em prosa e verso como a mais pura tradução da liberdade política. Do outro lado, a expressão “neoliberalismo”, cunhada pela esquerda, passou a funcionar como instrumento de denúncia da irresistível onda liberal e de uma (real ou suposta) redução generalizada dos gastos públicos. Hoje, tudo aquilo parece virado do avesso.
A falência do Lehman Brothers, em setembro de 2008, deflagrou o colapso global. A reação dos governos, nos Estados Unidos e na Europa, foi assumir o controle de do núcleo do sistema financeiro. Além dos bancos e seguradoras, o governo americano chegou a colocar sob as suas asas a General Motors e a Chrysler. No mundo inteiro, foram lançados pacotes fiscais multibilionários de estímulo às economias e os déficits públicos cresceram a níveis jamais registrados. As despesas públicas totais ultrapassaram estratoféricos 40% do PIB nos Estados Unidos, 50% na Grã-Bretanha e 55% na França. Contudo, especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a trajetória expansionista começou antes do colapso financeiro global, embora tenha se acelerado depois dele.
Contrariando as receitas econômicas liberais propaladas pelos republicanos, o governo de George W. Bush promoveu um aumento de gastos públicos comparável ao do democrata Lyndon Johnson na década de 1960. Johnson gastou para fazer a Guerra do Vietnã mas, em maior escala, para ampliar o Estado de Bem-Estar Social criado três décadas antes pelo também democrata Franklin Roosevelt, em meio à Grande Depressão. Bush gastou essencialmente na “guerra ao terror”, ou seja, no Iraque, no Afeganistão e na criação da vasta burocracia doméstica do Departamento de Segurança da Pátria. Contudo, ele ampliou também as despesas do Medicare, o sistema de saúde para idosos. Hoje, os gastos públicos americanos aproximam-se daqueles do Canadá, sempre apontado como um “país europeu” na América do Norte liberal, e o déficit dos Estados Unidos atingiu um perigoso recorde histórico.
Na Grã-Bretanha, após uma fase inicial de redução dos gastos públicos, os gabinetes trabalhistas engajaram-se na ampliação das despesas com o serviço público de saúde e com o funcionalismo em geral. Mesmo antes da crise financeira, a potência mais liberal da Europa exibia um Estado maior que o da Alemanha, tradicional bastião do Estado de Bem-Estar Social. Entretanto, assim como nos Estados Unidos, um vetor crucial de expansão das despesas estatais é a chamada “segurança interna”. O governo britânico utiliza atualmente mais de quatro milhões de câmeras de monitoramento de locais públicos – uma câmera para cada 14 habitantes. Na cidade de Liverpool, a polícia já usa pequenos aviões automáticos, como os empregados pelas forças da OTAN no Afeganistão, para vigiar a população.
Globalização é uma expressão geralmente associada à concorrência de grandes empresas privadas no mercado mundial. Já é tempo de rever o significado do fenômeno. Em 2009, sinalizando uma tendência, cinco empresas controladas por capital estatal já se encontravam no seleto grupo das 25 maiores empresas globais. Três delas são chinesas (o grupo financeiro ICBC, a petrolífera PetroChina e o banco de investimentos CCB), uma é o conglomerado russo de petróleo e gás Gazprom e a outra é a brasileira Petrobrás.
A emergência de empresas estatais entre os grandes conglomerados globais reflete duas novidades cruciais. A primeira é o aumento dos preços do petróleo, que sustenta a expansão mundial das operações das estatais petrolíferas da China, Rússia, Brasil e outros países (como a malaia Petronas, que opera em três dezenas de países). A segunda é a escalada da China rumo à condição de superpotência global. A China ingressou na era da globalização pela renúncia ao socialismo estatista, mas não aderiu ao modelo ocidental da economia de mercado, optando pela configuração de um capitalismo de estado. Na China, as decisões estratégicas de investimentos são tomadas pelo núcleo do poder político. As empresas estatais e também as empresas de capital misto, que constituem juntas a espinha dorsal da economia, seguem os comandos de Pequim, não as sinalizações dos mercados. O modelo chinês de capitalismo de estado inspira o projeto da Rússia de restauração de seu poderio internacional e molda as opções de outros países, como o Irã e a Venezuela. A ascensão do capitalismo de estado tem óbvias implicações geopolíticas e estratégicas. Há pouco, o Congresso dos Estados Unidos impediu que Dubai, um dos sete componentes dos Emirados Árabes Unidos, adquirisse o controle sobre alguns portos marítimos americanos.
Nesta segunda etapa da globalização, a economia mundial apresenta uma geometria cada vez mais policêntrica. Não é preciso apostar no rápido declínio dos Estados Unidos para constatar que o século XXI não será a era do iberalismo triunfante profetizada na hora da extinção do socialismo soviético. 
By Magnoli

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