“Se a criança é levada a buscar seu material, a fazer sua elaboração, a se expressar argumentando, a buscar fundamentar o que diz, a fazer uma crítica ao que vê e lê, ela vai amanhecendo como sujeito capaz de uma proposta própria.”
Não tente se vangloriar dos méritos de sua aula expositiva diante do educador Pedro Demo. Ele é categórico: não há educação nenhuma em assistir a aulas, tomar notas e ser avaliado no final do bimestre. A isso ele chama ora de instrução, ora de transmissão de conhecimento. Pior: para instruir, os professores seriam dispensáveis. A eletrônica cumpriria esse papel sem maiores problemas.
Defensor da educação reconstrutiva, Pedro Demo sustenta que o “nível educacional se atinge quando aparece um sujeito capaz de propor, de questionar”. Para despertar esse espírito na criança, ele receita muita pesquisa e incentivo à elaboração própria de cada aluno. Nesse cenário, a aula tem papel coadjuvante. Indispensável mesmo só é a orientação e o acompanhamento atento do professor.
Ele não acredita, porém, ser preciso insurgir-se contra a aula ou o modelo instrucionista. Sua morte está anunciada pela ascensão das novas tecnologias na educação. E prevê: “Vai ser muito difícil no futuro fazermos qualquer proposta educacional que não seja em parte virtual.” Mas não serão as novas tecnologias que vão salvar a pátria. Novamente, o grande desafio será inserir pesquisa e elaboração própria em um espaço de aprendizagem virtual.
Antes de embarcar para o Chile, onde desenvolve um trabalho na Universidade Educares, Pedro Demo concedeu a seguinte entrevista.
A primeira coisa que chama a atenção na educação reconstrutiva é o próprio nome. Por que não construtivismo simplesmente?
Pedro Demo - Eu guardo um profundo respeito pela proposta piagetiana chamada construtivismo. Mas eu prefiro o termo reconstrutivismo, porque é culturalmente mais plantado. Normalmente, a gente não produz conhecimento totalmente novo, no sentido de uma construção nova. Nós partimos do que já está construído, do que já está disponível, do conhecimento que está aí diante de nós e o refazemos, reelaboramos. Eu penso que o termo reconstrução é muito mais realista, só isso.
O pilar desse conceito é a importância da pesquisa no processo educacional, independentemente do nível de ensino. Como ela pode ser incorporada nos níveis mais elementares?
Pedro Demo - Primeiro, é preciso distinguir a pesquisa como princípio científico e a pesquisa como princípio educativo. Nós estamos trabalhando a pesquisa principalmente como pedagogia, como modo de educar, e não apenas como construção técnica do conhecimento. Bem, se nós aceitamos isso, então a pesquisa indica a necessidade da educação ser questionadora, do indivíduo saber pensar. É a noção do sujeito autônomo que se emancipa através de sua consciência crítica e da capacidade de fazer propostas próprias. Isso tudo tem por trás a idéia da reconstrução, mas também agrega todo o patrimônio de Paulo Freire e da “politicidade”, porque nós estamos na educação formando o sujeito capaz de ter história própria, e não história copiada, reproduzida, na sombra dos outros, parasitária. Uma história que permita ao sujeito participar da sociedade.
A pesquisa supõe uma reelaboração do conhecimento, ou seja, deve vir acompanhada de um processo de apreensão do conhecimento. Como a educação reconstrutiva concilia pesquisa e ensino?
Pedro Demo - Vamos colocar de outra maneira: você precisa de informação e de formação. Você não aprende sem vasculhar o que já está disponível. Mas a educação não é propriamente isso. Isso é meramente um processo informativo que pode ser feito pela eletrônica. Nem é preciso professor para meramente transmitir conhecimento. Mas o professor é absolutamente necessário para o processo reconstrutivo, como orientador, avaliador do aluno. A perspectiva muda bastante. O que nós estamos acostumados a ver no dia-a-dia é a proposta instrucionista, baseada no ensino, na instrução, no treinamento. Isso não é educação. Também é importante, também faz parte, mas o nível educativo se atinge realmente quando aparece um sujeito capaz de propor, de questionar. Precisamos de pesquisa e elaboração própria. São dois conceitos nos quais eu insisto bastante.
Mas no campo das práticas pedagógicas, como a pesquisa pode ser inserida no ensino fundamental, por exemplo?
Pedro Demo - Primeiro, fazendo recuar a aula, porque a aula é bem o signo da instrução, sobretudo a aula meramente expositiva, em que as crianças são obrigadas a assistir, tomar notas e fazer provas. Se você olhar bem, aí não ocorre nenhuma educação. Agora, se a criança também é levada a buscar seu material, a fazer sua elaboração, a se expressar argumentando, a buscar fundamentar o que diz, a fazer uma crítica ao que vê e lê, aí ela vai amanhecendo como sujeito capaz de ter uma proposta própria. Isso é o que queria, na verdade, Piaget. Ele sempre disse que a criança é um grande pesquisador: é curiosa, quer ver as coisas, quebra os brinquedos para ver o que tem lá dentro, pergunta muito. A escola é que, não sabendo disso, abafa essa vontade de conhecer que a criança tem.
O senhor afirma que a curiosidade infantil deve ser estimulada, instigada incessantemente pelo educador. Como isso deve ser feito?
Pedro Demo - Esta é uma das grandes competências do educador, saber aproveitar essa potencialidade enorme que a criança tem de querer conhecer, de aprender, de inventar coisas diferentes. Aí está então o que eu quero dizer com a pesquisa como princípio de todo o trajeto educativo. É claro que a pesquisa como princípio científico, da pessoa que está fazendo Ph.D., é muito diferente das pesquisas da pessoa que está na graduação e da criança que está no ensino fundamental, mas, se a gente aproxima a pesquisa como cultivo do saber pensar, ela deve estar em todos os atos educativos, seja da menor criança, seja da pessoa mais adulta.
O que o senhor quer dizer ao afirmar que, na educação reconstrutiva, a qualidade política deve prevalecer sobre a qualidade formal?
Pedro Demo - Eu acho qualidade formal muito importante. Não estou dizendo com isso que ela é secundária, muito pelo contrário. As crianças precisam saber matemática, ciências, português, mas ainda mais importante é saber o que fazer com isso na vida, como interferir na sociedade, como mudar os seus rumos, como superar a condição de massa de manobra, como tomar o seu destino na mão, como fazer uma proposta. Isso é muito importante. Aí está o papel fundamental da educação e do professor que sabe provocar essa reação na criança, uma reação de sujeito, não de objeto.
O senhor faz uma distinção entre competência e conhecimento. Como a educação reconstrutiva se posiciona diante dessa dicotomia?
Pedro Demo - Acho que não deve ser uma dicotomia, são coisas que convivem dialeticamente. Eu vejo a competência técnica como instrumental. O fim das coisas é a competência ética, política, quer dizer, formar uma sociedade mais participativa, onde todos têm mais chances, onde os horizontes sejam compartilhados. Mas para termos boas condições de intervenção política é muitíssimo importante manejar o conhecimento adequadamente.
Ainda sobre o tema da competência, uma pressão que a escola sofre é a cobrança para que os alunos saiam de lá instrumentalizados, isto é, sabendo fazer. Que opinião o senhor tem a esse respeito?
Pedro Demo - O saber pensar inclui sempre o saber intervir. Nós temos que recuperar um pouco a proximidade entre teoria e prática. Acontece que as escolas e universidades chamam de formação apenas o discurso teórico e incluem em seus currículos apenas uma pequena parte prática, chamada estágio ou coisa do gênero, extremamente desproporcional. É preciso saber colocar a prática já no primeiro semestre. Eu acho que essa expectativa é muito importante. Os alunos deveriam ter nas escolas a possibilidade de aplicar o conhecimento sem cair no utilitarismo. A melhor coisa para uma teoria é uma boa prática. E a prática que não volta para a teoria envelhece e fica caduca.
Mas como diminuir essa distância?
Pedro Demo - Nós temos uma tradição universitária de separar as duas coisas. Quando nós vamos estudar num campus, nós ficamos quatro anos longe da cidade, da vida, do trabalho para estudar. Acho que isso vai mudar muito no futuro, inclusive por causa da aprendizagem virtual. A gente não estuda só em certos momentos, em certas horas, em certos espaços, mas estuda a toda hora, durante a vida toda, com toda a parafernália disponível, sobretudo a eletrônica. Mas isso vai demandar uma reforma curricular muito mais radical do que nós estamos imaginando, hoje chamada Parâmetros Curriculares.
Um de seus últimos livros publicados trata da teleducação. Que papel têm as novas tecnologias nessa reforma radical a que o senhor se refere?
Pedro Demo - Primeiro, uma coisa que quero crer que esteja garantida é que o futuro da educação está na teleducação. Vai ser muito difícil no futuro fazermos qualquer proposta educacional que não seja em parte virtual. Não apenas virtual, isso seria um erro. Mas também não vai dar para fazer educação apenas com presença física. O grande dilema, hoje muito pouco resolvido, é introduzir na teleducação uma real aprendizagem. As pessoas precisam aprender, não apenas ser informadas. Vou dar o exemplo da teleconferência. Se a gente olhar bem, ela é uma aula, não é nada mais que uma aula, muitas vezes expositiva. Agora, tem coisas bonitas, porque dá uma grande chance de participação num grande espaço. Você pode conhecer gente interessante, fazer perguntas, mas, se a gente lembrar que aprendizagem exige pesquisa e elaboração própria, então continua sendo uma aula. A teleconferência é um bom instrumento supletivo, é uma boa proposta de disseminação de conhecimento, mas não substitui, em hipótese nenhuma, a aprendizagem
Isso me faz pensar em outro conceito que o senhor trabalha, de que a aula não é o centro da aprendizagem. As novas tecnologias estão decretando o fim das aulas expositivas e abrindo espaço aos debates, às discussões?
Pedro Demo - É, não precisa brigar com a aula, porque ela vai recuando naturalmente à medida que a eletrônica assume o espaço da informação. Transmitir conhecimento é uma coisa muito importante para a sociedade, mas o mundo eletrônico faz isso com mais graça, com mais disponibilidade que o professor. Daí não segue que o professor não seja importante. Ele é absolutamente indispensável para a aprendizagem do aluno, para a formação reconstrutiva, política do aluno. Por isso, a aula vai recuar. Eu até posso dizer que ela não vai desaparecer, mas vai ser cada vez mais um componente supletivo do processo de aprendizagem. É impossível colocar a aula no centro da aprendizagem.
Um dos exemplos que o senhor dá para desmistificar a importância da aula é o livro O Mundo de Sofia, de Jostein Gaardner. Por que um livro como esse consegue instigar o aluno a aprender e a aula expositiva não?
Pedro Demo - Nós podemos trabalhar muito melhor também só com textos. Geralmente, no Brasil, só se faz fichar livros, o que não tem nada de reconstrutivo. E O Mundo de Sofia mostra bem como um professor "escondido" motiva, provoca a criança. Ela se desespera, trabalha, dá duro, aprende muita coisa sem que o livro tenha uma aula, uma prova, e é uma aprendizagem soberba. Então, a escola tem que cuidar da aprendizagem e não dos apoios que os professores acham importantes, em particular ficar “escondido” atrás da aula. O professor de matemática tem o compromisso de fazer o aluno aprender matemática. O primeiro compromisso dele é garantir que o aluno aprenda matemática. Ele não pode ficar satisfeito, realizado, se os alunos não aprenderem. Dar aula é fácil, é só despejar conhecimento, às vezes apenas copiado. Mas fazer um aluno aprender é a grande arte do professor.
O senhor comentou anteriormente que o mundo eletrônico transmite informações com mais graça. Como o senhor vê o papel da motivação na aprendizagem?
Pedro Demo - Eu penso que é preciso, de todos os modos, motivar os alunos para a elaboração própria, para buscar a informação, para tomar a iniciativa. Porque se a gente tiver um ensino apenas passivo, como é usual hoje, as crianças não se preparam direito para a vida, pois não conseguem enfrentar coisas novas. Ao mesmo tempo, torna-se injusto com as novas gerações, que têm uma percepção muito maior pela imagem do que nós, da velha geração, que gostamos do texto. A nova geração se sentiria muito mais respeitada se pudesse construir o conhecimento através do texto, como é típico do mundo virtual. Então, os professores precisam se preparar para isso. Certamente os professores mais velhos terão mais dificuldade, mas nunca é tarde para aprender, e acho que a educação sempre teve diante de si esse desafio de aprender coisas novas. Não vai ser agora que nós vamos falhar nisso. Temos que dar conta das motivações que a nova geração prefere.
O senhor considera que saber ler as imagens, compreender a função que elas ocupam na transmissão do saber é uma área do conhecimento já desenvolvida, ou ainda há muito que fazer nesse campo?
Pedro Demo - O mundo da informática, como o do cinema, está trazendo isso. Nós temos uma história do cinema com mais de cem anos. Mas a academia não aceita a imagem como argumento. E nós deveríamos nos abrir a isso. Quando o texto chegou na história da humanidade, ele também foi taxado de intruso, de coisa esquisita, e hoje ninguém mais acha estranho fazer um texto, um livro. Então nós não podemos estar fechados a essa nova perspectiva. Eu estou dizendo que é preciso saber pensar não só com texto. A nova geração possivelmente prefere pensar através de imagens. Isso ajudaria muito a escola, e o trajeto da formação em qualquer nível traria maior motivação e maior atualização.
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