quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Desafios da (In) disciplina na Formação Docente


O problema da disciplina escolar é grave. Questões de indisciplina sempre existiram: há registros históricos de mais de dois mil anos antes de Cristo com queixas do comportamento das crianças e dos jovens. Portanto, a indisciplina não é novidade. Nova é a intensidade com que vem ocorrendo nos últimos anos; esse aumento quantitativo provocou uma mudança qualitativa, de tal forma que não é mais possível deixar de lado essa questão na formação inicial e continuada do professor. Não estamos, evidentemente, entendendo a disciplina como algo fora da prática educativa escolar, como um anexo, algo “a mais”. Seria artificial querer separar a disciplina de questões como interesse, motivação, mobilização para o conhecimento, gestão da Escola como um todo, relacionamento da Escola com a comunidade, planejamento, conteúdo, metodologia, avaliação, objetivos, finalidades (o sentido do trabalho tem um papel absolutamente decisivo na constituição da disciplina).
Por outro lado, o campo teórico da disciplina escolar também se constitui de elementos que são fundamentais em várias atividades da Escola e que, além disso, não lhes são exclusivos, uma vez que dizem respeito igualmente a outras instituições e até mesmo às interações sociais cotidianas; passa por respeito, liberdade, responsabilidade, ética, desenvolvimento moral, internalização de valores, atitude, socialização, cooperação, consenso, negociação, controle, obediência e pelo próprio conceito de Educação, pela educabilidade humana e pelos processos de formação humana.
Entendemos, pois, que a disciplina deveria ser bem trabalhada na formação do professor, tendo em vista que é uma demanda nuclear da atividade docente. Considerando a especificidade do trabalho escolar (trabalho com a cultura e o conhecimento elaborado de forma mediada, sistemática, intencional e coletiva), não há como sustentar a idéia de que a disciplina seria uma “decorrência natural” do trabalho pedagógico. A disciplina também não diz respeito apenas ao sujeito ou ao relacionamento (interpessoal) professor–aluno, mas inclui o coletivo. Tem ainda um campo teórico-metodológico próprio: os estudos sobre disciplina implicam um leque de temas peculiares, que não costumam serem abordados em outros campos teóricos na formação docente, tais como: convivência escolar, coletividade de sala de aula (e da escola), clima de aula, direção ou manejo de sala, autoridade do professor, autonomia do aluno, reconhecimento mestre–discípulo, limites de comportamento/conduta/maneira de agir do aluno (e do professor), controle de trabalho didático/pedagógico (regras, normas, direitos e deveres, sanções), relações de poder (professor–aluno, aluno–aluno) e vivência de valores.


Por que o professor deve estudar disciplina?


Não há tanta coisa mais importante na sua formação? Com certeza, existem elementos muito valiosos na formação do professor; mas, inicialmente, se não dominar, se não tiver competência para construir a disciplina em sala, todo o seu trabalho pode ficar comprometido, justamente por falta de condições de exercer adequadamente sua atividade, em função dos problemas de comportamento dos sujeitos envolvidos (em especial alunos e professor, mas também equipe escolar e comunidade); além disso, um dos grandes objetivos da educação escolar é justamente ajudar os alunos a se desenvolverem eticamente numa perspectiva emancipatória, e isso, como sabemos, não se dá espontaneamente, apenas na base da “boa vontade”. No passado, não se colocava a necessidade de formação do professor no campo disciplinar, em função de uma série de fatores externos que configuravam determinado tipo de comportamento na sala de aula. De um lado, cabe lembrar o ambiente mais repressor na sociedade como um todo e nas relações familiares, em particular; de outro, o mito de ascensão social que envolvia a Escola. Ou seja, havia sentido e limites (elementos fundamentais para que haja disciplina) dados socialmente, o que facilitava incrivelmente o trabalho do professor, em especial no que diz respeito à indisciplina ativa (os alunos podiam não estar interessados, mas não se manifestavam com tanta intensidade como hoje). Não é que o problema estivesse resolvido, uma vez que estar dado socialmente não significa necessariamente estar assumido por um sujeito em particular (nem significa que o assumido tenha um caráter libertador). Portanto, a tarefa de ajudar o aluno a construir um sentido para o estudo e um caráter libertador. Portanto, a tarefa de ajudar o aluno a construir um sentido para o estudo e lidar com os limites — bem como com as possibilidades — é fundamental no ato educativo. Atualmente, com a crise social e escolar, essa demanda apenas manifesta-se de maneira mais clara.Os vazios na formação somados aos enormes desafios da prática levam muitos professores a situações profissionais desagregadoras: Busca ansiosa de “receitas” para resolver os problemas de indisciplina. Acusação contra alunos, pais, sistema (“a melhor defesa é o ataque”). Encaminhamentos (“síndrome de encaminhamento” para equipe escolar ou serviços especializados). O que está por trás de tais atitudes é a transferência de responsabilidade: espera-se que outro resolva e, ainda, rapidamente. Resistência à inovação: o professor fica com medo de tentar novas abordagens metodológicas e assim “perder o controle” da turma. Enfocando reflexivamente o campo da formação docente, entendemos que, por certo, não existe uma formação universal. Os critérios de definição da formação têm a ver com a concepção de Educação que se assume com o entendimento da função do professor. Infelizmente, em pleno terceiro milênio, há, ainda, professores que entendem que sua função é meramente transmitir determinado saber; e se o aluno não aprendeu ou se apresenta problema de comportamento, isso simplesmente não é com ele... Em contraponto, se entendemos que a tarefa do professor é a humanização através do ensino — que tem como meta possibilitar a apropriação significativa, crítica, criativa e duradoura dos elementos relevantes dos conhecimentos e da cultura (crença, valores, habilidades, atitudes, práticas) historicamente acumulados, tendo em vista a formação da consciência, do caráter e da cidadania — então, com certeza, sua formação deverá contemplar não apenas a gestão da aprendizagem, como também a gestão da coletividade, dos comportamentos.

Reflexões Finais


Em linhas gerais, conforme Celso Vascocellos, o posicionamento dos professores pode ser classificado hoje em três grandes tendências: a Autoritária, a Espontaneísta e a Dialético-libertadora (que representa um esforço de superação por incorporação tanto da Autoritária quanto da Espontaneísta), podendo ser analisadas enquanto Postura do Professor e Concepção de Disciplina (Vasconcellos, 2006):

Autoritária
a) Rígida – age sempre da mesma forma, apesar das mudanças e contradições da realidade. b) Autoritária/Seca – muitíssima certeza, pouquíssima dúvida; não precisa dos outros, pois se julga auto-suficiente, sendo muito pouco afetiva, ou melhor, tendo muita dificuldade para trabalhar com a afetividade. Pressupõe que o seu contexto de significação seja o mesmo do aluno; não admite que o aluno tenha entendido de forma diferente. Não verifica mais suas hipóteses; passa a ser dogmática.
Disciplina é seguir normas existentes; é silêncio. O professor sente-se totalmente responsável pela disciplina da classe. Tem “sucesso”. Não quer dialogar a respeito dos problemas da sala (“Não posso perder a autoridade”). A disciplina é um problema restrito à sala de aula; e a culpa, evidentemente, é dos alunos.
Espontaneísta
a) Instável – nunca sabe bem qual o próximo passo. b) Frouxa/Omissa – não tem certeza de quase nada; alimenta culpa e má-consciência por saber mais que os alunos; a afetividade fica difusa, pois, de um lado, sente que se entrega aos alunos, mas, por outro, sente-se traído por eles, que “não sabem usar a liberdade” dada. Falta espinha dorsal.
Disciplina é seguir os impulsos, fazer o que tiver vontade. A responsabilidade é da classe (“Problema de vocês”; “eu já sei, vocês é que estão pagando”; etc.). Está sempre tendo que recorrer a esse discurso, pois não convence ninguém.
Dialético-libertador
a) Dialética – leva em conta as variações e contradições da realidade, procurando intervir a partir delas. Reconhece que está sujeita a equívocos e erros. Valoriza a participação, o respeito, a significação do trabalho, a autocrítica e a correção fraterna.
b) Firme/Terna – Tem certeza da causa pela qual luta, o que dá autoridade, porém alimenta a abertura no sentido de busca da verdade, o que dá humildade. Como sua causa, em última instância, é a humanização, tem ternura e respeito para com as pessoas.
Disciplina é a auto-regulação do sujeito ou grupo, tendo em vista o objetivo a atingir. O educador, num primeiro momento, assume a responsabilidade pela disciplina, enquanto articulador da proposta, levando porém a que a classe, progressivamente, a assuma também. Tem como parâmetro não a sua pessoa (sua “autoridade”), mas as necessárias condições para o trabalho coletivo em sala de aula.

Evidentemente, essas posturas não existem em “estado puro”. Cabem alguns questionamentos: Em cada realidade concreta em que atuamos, qual a tendência predominante? Até que ponto nos damos conta de que a postura Dialético-libertadora não é uma simples “média”, mas está perpassada por uma tensão contraditória (direção por parte do educador versus iniciativa por parte do educando)? Frente ao exposto, reiteramos que é urgente que a disciplina passe a ter um trato adequado na formação inicial dos docentes. Em relação aos professores que já estão atuando, essa formação pode se dar através de estudos e cursos; no entanto, consideramos que o grande espaço de formação continuada do professor é o trabalho coletivo constante na escola e a reunião pedagógica semanal, aliados a uma atitude de pesquisa da própria prática. Dessa forma, os problemas são enfrentados de maneira crítica e coletiva, constituindo-se não mais em motivo de queixas, mas em caminho de autêntica formação em direção a uma práxis transformadora.

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