quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

COMO FALAR SOBRE A MORTE OU COMO PENSAVA TIA ARMERINDA

Família é coisa estranha, junta gente de todas as feições e faz um caldeirão de histórias. A minha não é muito diferente, aquelas coisas tradicionais, dezessete filhos do lado do pai, sete do lado da mãe, televisão colorado RQ, do tempo da National, enfim uma tiozarada de tudo quanto é apelido. Tinha o tio “coração vagabundo”, o tio “gordo” e é claro a tia Almerinda. Como todos, somos mortais, um dia a dama de preto vem nos visitar e aí já sabemos o dilema, “era tão bom”, era “tão feliz”, tadinha da viúva...

Falar da morte sempre é complicado, cada um pensa e já experienciou algo sobre a dita cuja. Lá em casa era tabu de um lado e festa do outro. Na família da mãe era cercada de dor, lágrimas, carpideiras e o escambau. Na família do pai um festerê, que parecia um kerb alemão. Em vez do choro, muitas risadas, músicas e depoimentos que acabavam na gargalhada. Nunca compreendi direito qual era a moral até conhecer a tia Almerinda (Armerinda segundo meus outros tios).
Ela era aquela tia que morava longe, lá no interior do Coqueiro Baixo, com aquele sotaque meio gringo, de cabelo liso bem preto com mechas brancas, tipo a bruxa Memeia, tinha berruga e tudo (é berruga mesmo), usava um guarda chuva sempre e sempre tinha algo a dar pras crianças. Uma grande mulher dizia-se, se bem que era grande mesmo, outros chamavam de guerreira. Alguns falavam que era meio tampa, mas não rasgava dinheiro.
Certo dia alguém me perguntou: - Sor como tu vês a morte? Respondi de pronto que se a visse já estaria morto! – Fala sério profe! Queria saber como entendes a morte? Lembrei-me do livro daquela menina que roubava livros, que “quando a morte conta uma história é melhor você ouvi-lá” e aí me veio a imagem do velório da tia Cecília. Grande tia Cecília.
O entrevero já estava formado quando chegamos. A família inteira, mamãe, papai e filhinhos, todos aprumados, recomendações mil, olha o fiasco, olha isso, olha aquilo. Pasmei quando o pai tira o violão e sai rasgando o menino da porteira, tio Sivero pega a gaita e o tio Astro (Astrogildo) solta a goela e no meio de tudo saiu um - êta porquera! Nessa altura já todos batiam palma, alguns sem entender nada obviamente. De repente para tudo, pensei agora vem guerra, que nada! Eram os gêmeos filhos dela chegando e pedindo uma música do “texera”...
Notei que tia Almerinda ia ao caixão de vez em vez e largava um papelzinho. Lá jazia lívido o corpo de tia Cecília, bem aprumada, com as bochechas bem rosadas, flores e aqueles papeizinhos que atiçavam minha curiosidade. Mas, como pegar um? E se a morta se invoca? E se minha mãe me pegasse? E se fosse o babaca do primo mais tonto que pegasse? E assim foi feito. Vitória das vitórias. O assunto no meio da parentaia era que pegaram um bilhete da tia Armerinda. Escondidos nas entresalas e corredores conseguiram ler: “Cecília, fala pro pai que aqui tá tudo bem. Diz prá mãe não se preocupá, o Carlão já se curou das ventas. Aproveita e dá um abraço no Viva (tio Vivaldino) que ele fez aniversário semana passada. Pro alemão diz que eu vou demorar mais um pouco!” Gargalhadas homéricas, agora entendia tudo.
Gente louca me diriam. Mas é minha família. Hoje passados vários anos, experiências vividas, quilômetros rodados, compreendo o que queria tia Almerinda e os demais ao falar da morte: do limão uma limonada e da morte apenas uma passagem para outra vida.

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